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A vanguarda está mais na biologia do que na tecnologia

Foram 20 dias de férias, sem redes sociais, offline, isolado na casa de minha avó no interior de São Paulo. Ela, que, com seus 91 anos, mal enxerga e ouve com dificuldade, não vê mais tanto entretenimento assim na televisão. E, para distrair e passar o tempo, me sentava ao lado dela e ficava perguntando coisas sobre os tempos dela no sertão da Paraíba. Numa dessas conversas, ela me falou com saudade de duas frutas que adorava e eu nunca tinha ouvido falar: inharé e trapiá – que fiz questão de buscar em São Paulo para a gente comer junto, mas só encontrei a segunda. Fiquei pensando em como aquela fruta reconectou minha avó com o lugar dela, e como agora essa fruta que descobri e adorei me conectou com a minha avó e também com o lugar dela.

Voltei de férias e, sem ter ideia do que escrever, voltei às redes sociais para me inteirar dos assuntos, saber o que havia de novo, ver se abria uma janela para alguma pauta. Com a mente limpa, entrei no feed e me senti numa feira onde todo mundo está gritando e oferecendo sempre as mesmas coisas: banana, limão, laranja, uva, morango, manga, abacaxi, melão, melancia, maracujá. Muda a qualidade e a maturidade de uma e de outra, mas você já conhece o sabor de todas. E sabe que existe muito mais por aí. Em termos de criação e criatividade, foi assim que me senti com os conteúdos, os assuntos, os memes, o humor, a linguagem, a estética e até com a inteligência artificial – pauta espremida até a última gota. 

Assim como a trapiá do sertão, é preciso sair dos grandes centros (criativos, tecnológicos e afins) para encontrar algo diferente. Fruta e criatividade dão em abundâcia no Brasil. Quando alguém produz algo bom, um monte de pessoas (e de marcas) passam a reproduzir também (algumas com mais naturalidade, outras com menos). E o algorítimo passa a promover mais do mesmo. 

Concluí que não encontraria nada de novo na internet, mas fora dela. Foi na TV Cultura que vi o curador de arte Marcello Dantas falar sobre o Sfera IK, o Museu da Natureza e como arte com tecnologia já se tornou algo muito normal para nós, jogando luz sobre um movimento de arte com biologia. 

Mais do que esculturas e experiências, a provocação aqui é sobre o jeito de pensar nossas criações, nossas inovações, nosso desenvolvimento em harmonia com a natureza. E isso vai além da arte: é na saúde, na moda, na ciência, no transporte, na gastronomia, na comunicação e todas as indústrias. 

Sabemos que meio ambiente, biodiversidade e sustentabilidade são mais do que pautas quentes: são assuntos urgentes. Nesse sentido, essa força maior nos empurra para um único caminho possível para o nosso desenvolvimento, porém rico em possibilidades: hoje, a vanguarda está mais na biologia do que na tecnologia. 

A tecnologia sempre será só uma ferramenta – e nem sempre digital.

No Sfera IK – um local de exposição para artistas criarem no meio de uma floresta localizada em Tulum, no México –, a provocação de Marcello Dantas é: faça alguma coisa que seja relevante para pelo menos uma espécie além da sua; você tem que trabalhar com a consciência de que outra espécie existe. São ideias propostas para desvendar essa tênue relação entre nós e outras espécies. E como elas e nós estamos inseridos juntos nesse ciclo social. Se aparecer uma mosca ou abelha na sua frente, o primeiro instinto é matar, mas até ela, que parece sem importância num primeiro momento, tem também a sua relevância para nós como um todo. 

São trabalhos que envolvem a vida selvagem com participantes ativos e iguais no processo de criação de arte para reforçar os imperativos climáticos e enfatizar o potencial de interconexão humana com a natureza na arte contemporânea.

Um belo exemplo dessa proposta é a exposição MAMA, da artista francesa Marlène Huissoud com as abelhas Meliponas.

A abelha Melipona é uma espécie em extinção. Seu mel era utilizado pelos povos locais para fins medicinais. O trabalho de Huissoud depende exclusivamente do envolvimento da abelha Melipona com a instalação e o ambiente circundante. Uma espécie de grande casa estruturada com bejuco de origem local e finalizada com esterco, cinza, argila e cera vegetal extraída de cactos nativos, com seis colmeias-satélites vazias para encorajar as abelhas a expandir suas viagens por todo o complexo de artes. As próprias chaminés do edifício e o design biomórfico permeável permitem entrar e sair do espaço expositivo à vontade, promover a interação pacífica e a coexistência entre humanos e animais selvagens.

Outro exemplo dessa maneira de pensar é a exposição PHARMAKON: Simbiótica Psicotropical, por Cristina Ochoa.

Os anos de pesquisa de Cristina Ochoa sobre o poder das plantas medicinais e os rituais que as envolvem são incorporados em uma exposição multissensorial. As duas primeiras partes da exposição são uma expressão de sua pesquisa sobre a flora nos textos sagrados maias Popol Vuh e Chilam Balam, que ela retrata em obras de arte criadas principalmente com cerâmica, vidro e tecido. Quando todas as peças se juntam, surge uma instalação maior. Aqui, os visitantes são convidados a experimentar em um ambiente imersivo alguns dos mitos maias relacionados a diferentes árvores: ceiba, a árvore mais sagrada, a jicara e o sangre de drago, entre outros. Uma exposição imersiva que explora a tradição farmacológica maia, propõe aos visitantes vivenciar algumas cerimônias ancestrais com todos os seus sentidos e os convida a refletir sobre nossa relação atual com as plantas e redescobrir seu poder.

Temos muito a aprender com a ancestralidade de diferentes culturas. O novo também se revela ao nos reconectar com a nossa natureza e com o nosso lugar. Assim como eu fiz com a minha avó e com a trapiá. 

Até plantei uma semente no quintal.

Fontes:

https://www.sferik.art/
Programa Provoca, TV Cultura

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